Crônicas Cronificadas - A Espinha...

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Ilustração por Raquel Esagui
"A espinha...


Era uma tarde de domingo, como eu disse era. Hoje, 30 anos depois, ainda não esqueci.
Neste domingo, acordei com a maior disposição do mundo, ia para casa da minha namorada Ana, e juntos passaríamos o dia no clube do qual éramos sócios.
Senti uma dorzinha na ponta do meu nariz. Toquei no local dolorido e a dor aumentou. Fiquei preocupado, corri para o banheiro. Ao me olhar no espelho o inevitável aconteceu. Lá estava ela, parada, me olhando frontalmente como que me desafiando. Sua postura era: - quero ver você me tirar daqui! Uma enorme espinha... enorme espinha, enorme espinha, enorme espinha.... Ficou ecoando em minha mente. Parecia que cada vez que pensava nela o tamanho aumentava. Queria parar de pensar. Não queria pensar.
Já meio desanimado, perdi o pique, fiquei imaginando....Minha namorada se aproximando de mim e dizendo:- o que é isto na ponta do seu nariz? O que eu poderia responder?...-é uma pequena residência de aracnídeo meu amor. Sim, para quem não sabe dentro da espinha está um pequeno aracnídeo. Um dos mais nojentos do planeta. Penetra através da pele sem pedir licença e se instala confortavelmente, no aconchego intradérmico, fazendo o corpo inteiro sentir o maior mal estar.
As gozações são diárias e intermináveis. A gente tem que ouvir coisas como: nariz de bruxa!; espinhudo; crateraetc...
Tomei banho, lavei o rosto várias vezes, talvez gastasse a espinha, e ela não aparecesse tanto. Fui falar com a minha mãe sobre o aracnídeo que havia acampado na ponta do meu nariz. Minha mãe disse: -você está com uma espinha na ponta do nariz. Foi deprimente, devia haver uma lei federal onde a frase você tem uma espinha na ponta do narizfosse passível de punição severa. Ninguém deveria poder utilizar a espinha do outro como uma forma de agressão velada. Passei um creme que a minha mãe me deu com o intuito de diminuir a minha angústia. Meu nariz ficou branco. Piorou. Resolvi lavar o rosto e tirar a pomada. Troquei de roupa e fui para a casa da minha namorada.
Cheguei. Sou decidido, esta espinha não vai me abalar. Existem milhares de pessoas com espinhas e que vivem ou convivem muito bem nesta relação simbiótica. Bati à porta. É, na casa dela não tinha campainha. Aguardei, quer dizer, aguardei ansiosamente, quer dizer, aguardei angustiadamente. Nheco, nheco é o barulho da porta. A porta se abriu, minha namorada me beijou feliz e disse:-  o dia está maravilhoso, vamos aproveitar o máximo!
Um profundo vazio se apoderou de mim. Eu com uma cratera na cara, um buraco imenso no meu nariz e ela não percebeu. Não, ela percebeu, mas estava sendo educada. É isto, como não pensei antes, ela é muito educada e nunca fala nada que magoe alguém. De qualquer forma, eu tinha uma imensa espinha na ponta do meu nariz, na ponta eu disse, o que era uma agravante. Ter uma espinha em qualquer parte do corpo não é tão grave.
Ter uma espinha na ponta do nariz é como anunciar para o mundo um carma.
A mãe dela entra na sala e diz: - oi Carlinhos, tudo bom?, o dia está lindo vamos nos divertir! Vamos nos divertir pensei?. Imediatamente minha namorada emendou...
Ah, esqueci de dizer Cá, para quem não sabe Cá é a forma carinhosa de se tratar o namorado quando se convida a mãe para algo que já se sabe não aceitável, convidei a mamãe para ir conosco.Legal, né? Respondi:- Muito legal, que tal nos apressarmos para aproveitar melhor o dia? -Vamos, mamãe ?, disse ela.
Entramos no carro. Fiquei de olho no retrovisor e o retrovisor de olho na sogra, e a sogra de olho em mim. A qualquer momento ela perceberia que o meu perfil estava alterado pela imensa espinha, que faz os maiores narizes do mundo se tornarem pequenos, quase invisíveis. Em determinado momento, ela disse : - carlinhos, você notou que está com uma pequena espinha no nariz?
Era tudo o que eu temia...era tudo o que eu temia.... era tudo o que eu temia... ecoando na minha cabeça, estava em transe. Respondi: -Ahn?, e ela repetiu... carlinhos, você notou que está com uma pequena espinha no nariz?
-Eu, não, não notei. Olhei no espelho retrovisor e disse: - Puxa é mesmo uma espinha no nariz.
-Você notou que a Ana também está com uma espinhinha na pontinha do nariz.  Virei-me imediatamente para a Ana, minha namorada, e vi o seu rosto corar, dei uma imensa gargalhada, e ela olhou para o meu nariz e também começou a rir. Agora o mundo teria que dividir o olhar entre duas pessoas com uma espinha na ponta do nariz.
Este se tornara um domingo muito feliz."

(Crônicas Cronificadas - A espinha por Moisés Esagui)

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